Especial Religião: Islão
De olhos postos em Alá
São muitos os que todos os dias passam à sua porta, ali junto à Praça de Espanha, em Lisboa, mas não tantos são os que alguma vez lá entraram. De pedras alaranjadas e azulejos predominantemente azuis, a Mesquita Central de Lisboa desenha-se altaneira entre os prédios comuns da capital portuguesa. Cá fora, um cartaz dá algumas indicações a quem chega: é um guia de vestuário e de comportamento para os visitantes – com mais pormenores para as mulheres. Mas não se assustem. “Este é um espaço aberto a todos”, sossega o Sheik David Munir, Imã da Mesquita e nosso guia. Que comece a viagem pelo Islão em Portugal.
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São 11h00 e o sol aperta em mais um dia de início de outono que mais parece verão. Resguardamo-nos do calor por entre as arcadas do pátio central, de inspiração magrebina, deste que é o maior templo islâmico em Portugal. Com vista privilegiada para o minarete, a torre da mesquita, temos a sensação de que deixamos Lisboa bem longe e voamos para um qualquer cenário das Mil e Uma Noites.
Voar era mesmo um dos grandes sonhos do nosso entrevistado, que entretanto chega. Sonhava ser piloto de aviação civil, mas hoje apenas “voa” em simuladores, no pouco tempo livre que lhe resta. Com um peculiar sentido de humor e uma visão do Islão que colide com o estereótipo, David Munir é o Imã da Mesquita Central de Lisboa desde 1986. Nasceu em Moçambique, na cidade da Beira, e veio para a capital portuguesa com os pais, tal como muitos o fizeram, após 1974. Atualmente, são cerca de 60 mil os muçulmanos a residir em Portugal. A maior parte é originária das ex-colónias portuguesas, fator que ajuda a explicar a boa integração desta comunidade em Portugal.
Mas não percamos mais tempo. “São cinco os pilares básicos da doutrina islâmica”, começa prontamente por explicar David Munir. O primeiro, e mais importante, tem que ver com a crença: “Toda a crença islâmica assenta neste pilar: acreditar que Deus (Alá) é único e que o profeta Maomé é o seu último mensageiro.” O Imã reitera a palavra último, por oposição a único. De acordo com o Islão, antes de Maomé, nascido no ano de 570, tinham existido outros profetas: Jesus, Moisés e Abraão foram alguns deles. “A única religião não cristã que aceita Jesus como um profeta e mensageiro é o Islão.”
Rezar: do Fajr ao Ishá
Alvorada (Fajr), meio-dia (Zuhr), meio da tarde (Assr), pôr do sol (Magrib) e noite (Ishá). As orações são o segundo pilar do Islão. Na mesquita, noutros espaços de oração ou individualmente, é obrigação de todos os muçulmanos cumprir estes cinco momentos, todos os dias. “A oração é um diálogo com O Criador”, indica David Munir, acrescentando que existem alguns pormenores a considerar no momento da oração: a pessoa deve ter o corpo limpo, a roupa limpa, estar num lugar limpo e orientado para Meca. A cada oração corresponde ainda um chamamento, o Adhan. Numa voz que parece cantada sem o ser de facto, há um apelo que vai repetindo, em árabe, máximas do Islão. Cinco vezes ao dia, a voz ecoa no ar.
Além do chamamento, a preparação das orações implica também um ritual de purificação — a ablução (wudú) — que é feito por homens e mulheres, mas em locais separados. Do pátio central consegue-se espreitar o balneário masculino. À porta, vários pares de sapatos alinham-se numa espécie de sapateira gigante. É tempo de colocarmos também os nossos e de entrar na sala de culto principal – as senhoras têm ainda de colocar um lenço sobre a cabeça. Os pés tocam no tapete em que se desenham várias divisões: um retângulo deverá corresponder a uma pessoa. Por entre mármores e azulejos, um relógio digital com grandes números vermelhos relembra que a oração se inicia numa determinada hora e tem uma duração limite, cerca de dez minutos. Tudo é feito em função do calendário lunar, a base do calendário islâmico.
É no nono mês deste calendário, mês do Ramadão, que acontece outro dos pilares do Islão: o jejum. “O mês do Ramadão é sagrado e celebra o início da revelação a Maomé do Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos. Durante esse mês, desde antes da primeira oração do dia e até ao pôr do sol, os muçulmanos estão em jejum. O jejum islâmico é simples, prático e barato: não comer, não beber, não ingerir nada antes da primeira oração do dia e até ao pôr do sol. A partir desse momento é obrigatório quebrar o jejum.” E quais são as condições para jejuar? David Munir responde: “São três: em primeiro lugar, ser muçulmano, ou seja, acreditar no primeiro pilar; em segundo lugar, ser adulto, e, por fim, ser saudável.” Crianças, idosos, doentes ou grávidas não são obrigados a jejuar. Mas as vantagens, mais do que físicas, são espirituais: “O objetivo é valorizar aquilo que temos e sentir um pouco na pele aquilo que os outros não têm”, salienta o Imã.
Isto leva-nos a mais um dos pilares do Islão: caridade ou zakat, ou seja, ajudar as pessoas que mais necessitam. As regras são claras: “Cada ano, ao fazermos o balanço da nossa atividade, o Islão prevê que façamos a separação de 2,5 por cento do total. Esse valor deverá ser doado a quem mais precisa. Se tivermos um familiar que necessita, esse será o primeiro a merecer a nossa caridade”, afirma David Munir. De salientar que o dinheiro relativo ao zakat não pode reverter a favor da construção de mesquitas ou de locais de culto. Para esse fim existe outro tipo de caridade, facultativa.
Por último, a peregrinação a Meca, uma vez na vida, no décimo segundo mês do calendário islâmico. Mais uma vez, obrigatório para a pessoa adulta, saudável e com meios e possibilidades financeiras. “Se não tiver possibilidades, o Islão diz que não é obrigatório. Quando tiver posses, vou. Não se pode pedir um empréstimo para ir a Meca, seja a um amigo, seja a um banco, seja a qualquer instituição.”
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O medo do desconhecido
“Se virmos bem, estes pilares não variam muito quando comparados com outras doutrinas. Todas as religiões têm as suas crenças e acreditam nelas. Em todas há orações e se apela à caridade. O jejum acontece em muitas crenças – diz na Bíblia que Jesus jejuou 40 dias, por exemplo. E as peregrinações também são comuns: os muçulmanos vão a Meca, os judeus vão a Israel, os hindus à Índia, os cristãos a Fátima ou ao Vaticano. O que acontece é que, globalmente, os muçulmanos são dos que mais se dedicam à prática da sua crença, o que pode levar a ideias deturpadas da realidade.”
É com um discurso inclusivo que David Munir vai guiando a visita à Mesquita, aberta todos os dias a muçulmanos, mas não só. “Recebemos, diariamente, crianças em visitas de estudo e organizamos visitas guiadas para adultos uma ou duas vezes por mês. Sabemos que a transparência é muito importante. Estamos de portas abertas, mostramos o que somos e não obrigamos ninguém a ser como nós”, acrescenta, reiterando que “a palavra Islão significa submissão voluntária. O Islão é um código de vida, é uma forma de estar na vida. Não se pode obrigar ninguém a ser muçulmano, a pessoa aceita de sua livre vontade e é na diversidade que podemos construir uma sociedade sã, uma sociedade segura, respeitando o seu próximo”.
É exatamente para combater os muitos preconceitos que persistem em relação ao Islão que David Munir apela constantemente à visita à mesquita: “Há pessoas que tinham ideias negativas sobre o Islão e, depois de visitar a mesquita, ficaram com uma perspetiva diferente. Nós, os portugueses, sempre convivemos com os outros povos, faz parte do nosso ADN. Mas é claro que quem não conhece tem medo e, naturalmente, afasta-se. Por isso é que as mesquitas estão sempre abertas. Qualquer pessoa pode chegar e visitar a mesquita, pode conversar connosco, pode tirar dúvidas, não há nenhum impedimento. E depois há muitos portugueses que já visitaram mesquitas no estrangeiro, mas a de Lisboa não. Costumo dizer que o que é nacional é bom!”, diz, sorrindo.
É também nessas visitas à mesquita que os participantes tentam perceber a posição do Islão sobre vários assuntos, nomeadamente sobre o divórcio. “Para haver um divórcio tem que haver um casamento. E ao contrário do que se pensa, o casamento não é obrigatório no Islão”, começa por dizer o Sheik. No entanto, quando nem tudo são rosas, a doutrina islâmica aconselha a não se optar pelo divórcio à primeira dificuldade, mas sim à separação física durante algum tempo. ”Durante esse período, o casal tem tempo para refletir e para chegar à conclusão de que a separação não foi uma boa opção, sendo melhor retomar a vida conjugal”, explica. Esta situação pode acontecer até duas tentativas. À terceira, a relação termina, não é mais possível conviver e dá-se o divórcio propriamente dito. “Quando há um divórcio, a mulher tem que ser respeitada e a dignidade dela tem que se manter. Não se pode difamar nem caluniar a mulher. Há teólogos que dizem, inclusive, que, se a mulher não tem nenhum sítio para ficar, quem sai de casa é o homem, mesmo que a casa seja dele. Ele pode dormir na rua, ela não. De qualquer forma, o Islão pede bom senso, pede que o divórcio, a acontecer, seja o mais amigável possível. Portanto sim, o divórcio é permitido. E sendo permitido, isso quer dizer que se um divorciado ou uma divorciada quiser voltar a casar, pode fazê-lo. Não há discriminação.”
Já no que toca à violência doméstica, David Munir é perentório: “O Islão condena qualquer tipo de violência, seja física ou psicológica, seja à mulher ou ao homem!” E se for dirigida a uma criança, ainda é mais grave. Falamos de casos de mutilação genital feminina, prática que muitas vezes se associa à doutrina islâmica, o que, na visão do Imã, não podia estar mais errado: “Essa é uma prática ancestral que surgiu muito antes do Islão. Acontece em alguns países de religião islâmica, tal como acontece noutros que não a praticam. É importante distinguir práticas culturais de práticas religiosas. Segundo o Islão, mutilar qualquer parte do corpo é proibido. Todas as crianças, até atingirem a puberdade, são inocentes. Portanto, se mutilar é proibido, mutilar uma criança é ainda mais proibido. Já para não falar que mutilar a parte íntima de um ser humano é, só por si, outro crime. São três crimes graves que a pessoa comete à luz do Islão. Mas quando o conhecimento não é suficiente, surge a convicção de que esta é uma prática religiosa. Se uma prática, seja ela qual for, prejudicar a humanidade, o Islão proíbe.”
Outra das questões que também suscita muitas dúvidas prende-se com a homossexualidade. E embora declare ter amigos homossexuais, David Munir assegura que, apesar de a sua religião não permitir a realização de casamentos entre pessoas do mesmo sexo – afirmando, inclusive, que nenhuma religião monoteísta aceita essa união –, a sua crença também lhe diz que deve existir respeito na diversidade: “Dou o exemplo de um parlamento. Lá estão representados todos os partidos e há assuntos em que há discórdia. Mas estão todos lá na mesma. A humanidade é assim e devemos promover a tolerância.”
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E depois da vida?
Uma mesquita, centrada na comunidade e em todas as suas necessidades, tem também de pensar na morte. Tal como outras religiões, os muçulmanos acreditam numa vida quando esta, terrena, acabar. Os ritos, esses, são diferentes do habitual. “Da terra viestes, para a terra ireis e da terra ressurgireis”, está escrito no Alcorão. Foi precisamente por isso que surgiu, na Mesquita Central de Lisboa, a primeira morgue islâmica a nível nacional. Além do banho ao corpo do falecido, dado pelos familiares mais diretos, a forma de sepultura é singular. “O corpo é sepultado apenas com uma mortalha (lençol branco), porque acreditamos que, após a morte, tudo deixa de ser nosso, inclusive a roupa. Também não há qualquer tipo de caixão. A única coisa que pode haver é uma pequena madeira que é colocada por cima.” Isto quando o corpo está intacto ou não representa perigo para a saúde pública. Nesses casos, o corpo é mantido dentro de um caixão. Os cidadãos muçulmanos são geralmente sepultados no cemitério do Lumiar, onde a comunidade tem um talhão. Existem mais dois nos cemitérios de Odivelas e Feijó, este último destinado sobretudo aos muçulmanos residentes na margem sul.
Uma comunidade bem integrada
Olhando para a Europa dos últimos anos, é normal que se fale em extremismo religioso e que surja o medo de ataques terroristas. Contudo, David Munir tem uma visão que vem, certo modo, apaziguar os anseios dos portugueses: “A comunidade islâmica portuguesa está muito bem integrada, ao contrário do que acontece em muitos países. Se perguntarmos aos franceses, aos belgas ou alemães, aí a história é outra. Isto explica-se porque a maioria dos muçulmanos que reside em Portugal veio, essencialmente, de Moçambique e Guiné-Bissau, ex-colónias portuguesas. E a presença de Portugal nesses locais era grande, já havia muita convivência, ao contrário do que se passava nos outros países da Europa: embora os muçulmanos que lá residem atualmente sejam também oriundos de ex-colónias europeias, nesses países de origem só a autoridade e o poder é que se instalaram, portanto não houve convivência prévia. E quando emigraram, foram excluídos e colocados em guetos, fazendo da integração um processo muito difícil, o que catapultou posições mais extremistas. Claro que também não podemos esquecer os fatores culturais. Por que é que os muçulmanos de Moçambique, por exemplo, quiseram vir para Portugal e não foram para países islâmicos? Porque os poucos que preferiram esta última opção, e embora a religião fosse a mesma, não se integraram. Culturalmente havia uma diferença enorme.”
A experiência do Imã da Mesquita Central de Lisboa dita, assim, que, em Portugal, não há razões para ter medo de extremismos. Isso não significa que se não olhe para o fenómeno com atenção, sempre de olhos postos na prevenção face a qualquer tipo de radicalização, não só no seio da comunidade, mas também daqueles que, não sendo membros, a nível nacional se digam muçulmanos. “Somos os mais interessados em que isso não aconteça”, adianta.
Manter este retângulo à beira mar plantado pacífico e acolhedor, conservando viva toda uma herança cultural que une todos os que aqui habitam, é o objetivo. Até porque, como dizia Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República, por ocasião da comemoração dos 50 anos da Comunidade Islâmica Portuguesa, “o Islão está na alma de Portugal”.
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